segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Início da leitura de "Os Maias" de Eça de Queiroz

"Pierre Renoir", de Auguste Renoir, 1890


"Ia abraçar Carlos outra vez entusiasmado, mas o rapaz fugiu-lhe com uma bela risada, saltou do terraço, foi pendurar-se de um trapézio armado entre as árvores, e ficou lá, balançando-se em cadência, forte e airoso, gritando: «Tu és o Vilaça!»
O Vilaça, de guarda-sol debaixo do braço, contemplava-o embevecido.
- Está uma linda criança! Faz gosto! E parece-se com o pai. Os mesmos olhos, olhos dos Maias, o cabelo encaracolado ... Mas há-de ser mais homem!"

"Os Maias", Eça de Queiroz, 1888

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

"O mercador de coisa nenhuma", António Torrado, desorientador de leitura



Por favor,

- Enumera as coisas "fastidiosas" que realizas ao longo do dia.
- Descreve todas as coisas que consegues dobrar.
- Diz-nos o que pode ser escovado.
- Explica-nos como limpas a tua mochila e os tapetes do teu quarto.

De seguida podes responder a estas perguntas:

- Podemos escutar o progredir das raízes através da terra?
- Os caules das plantas erguem-se pacientemente em direcção a luz?
- As formigas podem perder-se?
- Podemos vender grãos de areia?
- Quantos grãos de areia poderão existir?
- Uma gota de água poderá ser importante?
- Que coisa nenhuma gostarias de vender?
- Quantas coisas podem vir depois de um talvez?


Podes enviar-nos as tuas respostas e dúvidas para aqui

Mas também deves pedir que procurem contigo este livro: "O mercador de coisa nenhuma" de António Torrado

domingo, 29 de novembro de 2015

Deus, (...) está longe, não se ocupa do que fazem as mulheres.

"Nu feminino no divã", Henri Toulouse-Lautrec, 1882


"A sala agora estava um pouco escura.
- Pois não te parece? - perguntou ela.
Aquela conversa embaraçava Luísa: sentia-se corar; mas o crepúsculo, as palavras de Leopoldina davam-lhe como um enfraquecimento de uma tentação. Declarou todavia "imoral" semelhante ideia.
- Imoral, porquê?
Luísa falou vagamente nos "deveres", na "religião". Mas os "deveres" irritavam Leopoldina. Se havia uma coisa que a fizesse sair de si - dizia - era ouvir falar em deveres! ...
- Deveres? Para com quem? Para um maroto como meu marido?
Calou-se, passeando pela sala, excitada:
- E enquanto a religião, histórias! A mim me dizia o padre Estevão, o de luneta que tem os dentes bonitos, que me dava todas as absolvições, se eu fosse com ele a Carriche!
- Ah, os padres ... - murmurou Luísa.
- Os padres quê? São a religião! Nunca vi outra. Deus, esse, minha rica, está longe, não se ocupa do que fazem as mulheres."

"O primo Basílio", Eça de Queiroz

Joana - "O primo Basílio", Eça de Queiroz


"Mulher costurando a liga", Edouard Manet, 1878

"Foi à cozinha desabafar com a Joana. Mas a rapariga, estirada numa cadeira, dormitava.
Fora com o seu Pedro ao Alto de S. João. E toda a tarde tinham passeado no cemitério, muito juntos, admirando os jazigos, soletrando os epitáfios, beijocando-se nos recantos que os chorões escureciam, e regalando-se do ar dos ciprestes e das relvas dos mortos. Voltaram por casa da Serena, entraram a bebericar um quartilho no Espregueira ... Tarde cheia! Estava derreada da soalheira, do pó, da admiração de tanto túmulo rico, do homem, e da pinguita de vinho.
O que ia, era refastelar-se para a cama!"

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Leopoldina - embaraços não faltam

"Jeanne Samary", Pierre-Auguste Renoir, 1877


"Leopoldina deu um salto na voltaire. Filhos! Credo, que nem falasse em semelhante coisa! Todos os dias dava graças a Deus em os não ter!
- Que horror! - Exclamou com convicção ... - O incómodo todo o tempo que se está! ... As despesas, os trabalhos, as doenças! Deus me livre! É uma prisão! E depois quando crescem, dão fé de tudo, palram, vão dizer ... Uma mulher com filhos está inútil para tudo, está atada de pés e mãos! Não há prazer na vida. É estar ali a aturá-los ... Credo! Eu? Que deus me castigue, mas se tivesse essa desgraça parece-me que ia ter com a velha da Travessa da Palha! 
- Que velha? Perguntou Luísa.
Leopoldina explicou. Luísa achava uma «infâmia». A outra encolheu os ombros, acrescentou: 
- E depois, minha rica, é que uma mulher estraga-se: não há beleza de corpo que resista. Perde-se o melhor. Quando se é como a tua amiga, a D. Felicidade, enfim! ... mas quando se é direitinha e arranjadinha! ... Nada, minha rica! Embaraços não faltam!"

"O primo Basílio", Eça de Queiroz

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Felicidade


" Marcelle-Lender", Henri Toulouse-Lautrec, 1895


"Acácio tornara-se a sua mania: admirava a sua figura e a sua gravidade, arregalava grandes olhos para a sua eloquência, achava-o numa «linda posição». O Conselheiro era a sua ambição e o seu vício! havia sobretudo nele uma beleza, cuja contemplação demorada a estonteava como um vinho forte: era a calva. Sempre tivera o gosto perverso de certas mulheres pela calva dos homens,  e aquele apetite, insatisfeito inflamara-se com a idade. Quando se punha a olhar para a calva do Conselheiro, larga, redonda, polida, brilhante às luzes, uma transpiração ansiosa humedecia-lhe as costas, os olhos dardejavam-lhe tinha uma vontade absurda, ávida, de lhe deitar as mãos, palpá-la, sentir-lhe as formas, amassá-la, penetrar-se dela! Mas disfarçava, punha-se a falar alto com um sorriso parvo, abanava-se convulsivamente, e o suor gotejava-lhe nas roscas anafadas do pescoço. Ia para casa rezar estações, impunha-se penitências de muitas coroas à virgem; mas apenas as orações findavam, começava o temperamento a latejar. E a boa, a pobre D. Felicidade tinha agora pesadelos lascivos e as melancolias do histerismo velho! A indiferença do Conselheiro irritava-a mais: nenhum olhar, nenhum suspiro, nenhuma revelação amorosa o comovia! Era para com ela glacial e polido."

"O primo Basílio", Eça de Queiroz

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Juliana: a necessidade de se constranger ...


"Só", Toulouse-Lautrec, 1896


«A necessidade de se constranger trouxe-lhe o hábito de odiar: odiou sobretudo as patroas, com um ódio irracional e pueril. Tivera-as ricas, com palacetes, e pobres, mulheres de empregados, velhas e raparigas, coléricas e pacientes - odiava-as a todas, sem diferença. É patroa e basta! Pela mais simples palavra, pelo acto mais trivial! Se as via sentadas: "Anda, refastela-te, que a moura trabalha!". Se as vir sair: "vai-te, a negra fica cá no buraco!". Cada riso delas era uma ofensa à sua tristeza doentia; cada vestido novo uma afronta ao seu velho vestido de merino tingido. Detestava-as na alegria dos filhos e nas prosperidades da casa. Rogava-lhes pragas. Se os amos tinham um dia de contrariedade, ou via as caras tristes, cantarolava todo o dia em voz de falsete a "Carta Adorada!". Com que gosto trazia a conta retardada de um credor impaciente, quando pressentia embaraços na casa! "Este papel!", gritava com uma voz estridente, "diz que não se vai embora sem uma resposta!". Todos os lutos a deleitavam - e sob o xale preto, que lhe tinham comprado, tinha palpitações de regozijo. Tinha visto morrer criancinhas, e nem a aflição das mães a comovera; encolhia os ombros: "Vai dali, vai fazer outro. Cabras!"»

Luísa

"Jovem rapariga", Jean Renoir, 1876


"Veio encostar-se à voltaire de Jorge, passou-lhe lentamente a mão sobre o cabelo preto e anelado. Jorge olhou-a, triste já da separação: os dois primeiros botões do seu roupão estavam desapertados; via-se o começo do peito de uma brancura muito tenra, a rendinha da camisa: muito castamente Jorge abotoou-lhos."


"O primo Basílio", 
Eça de Queiroz, 1878

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Lampreia de ovos!



"Geraldo, o seu pobre Geraldo, era o pai de Jorge. Acácio fora seu íntimo. Eram vizinhos. Acácio tocava então rebeca e, como Geraldo tocava flauta, faziam duos, pertenciam mesmo à Filarmónica da Rua de são José. Depois Acácio, quando entrou nas repartições do Estado, por escrúpulo e por dignidade abandonou a rebeca, os sentimentos ternos, os serões joviais da Filarmónica. Entregou-se todo à estatística. Mas conservou-se muito leal a Geraldo; continuou mesmo a Jorge aquela amizade vigilante; fora padrinho do seu casamento, vinha vê-lo todos os domingos, e, no dia dos seus anos, mandava-lhe pontualmente, com uma carta de felicitações, uma lampreia de ovos."

"O primo Basílio", Eça de Queiroz

A mulher n' «O primo Basílio» de Eça de Queiroz

Salão na Rue des Moulins, Toulouse-Lautrec, 1894


Apesar do título, "O primo Basílio", referindo-se a um dos personagens masculinos, a extensão dos vários enredos da escrita de Eça nesta obra faz-se analisando o mundo feminino. A personagem “Luísa” constitui a plataforma em torno da qual outros modelos femininos desenrolam a sua caracterização e acção. Juliana, a empregada “de dentro”, que de si nada tem, a não ser o amor pelas botinas, símbolo e diferenciador de sub-classe social de quem não calça tamanco, impotente no desejo sexual, que calou ao longo dos anos e na incapacidade de alcançar outros níveis de “abastança”, ser capelista era o seu desejo, transforma-se na figura primordial da novela apresentada, já que lhe cabe o desfecho real da intriga: o roubo da carta, a chantagem pecuniária,  psicológica, social e pessoal, que a austeridade da sua vida miserável a obriga a realizar sobre Luísa, são características apresentadas pela narrativa que envolve o leitor em mundos de imaginação da solidão e ausência de sentido que nem na morte alcança o aconchego de um velório acompanhado, restando-lhe um conjunto de atitudes desprezíveis e mesquinhas. Joana, a cozinheira,  de bem com a condição que a vida lhe deu e com Pedro que usualmente leva “para dentro”. Leopoldina, realizada sexualmente, desventurada socialmente. Felicidade, suposta alta-burguesa, infeliz nos amores e na inexistente vida sexual, exuberante nas manifestações interiores e físicas. Estas cinco mulheres estão unidas pela ausência da maternidade. Não existem filhos, “rebentos” que justifiquem e atribuam sentido à sua existência, dão-se, assim, a comportamentos “desviantes”, cada uma no seu território psicológico e social, cada uma no seu “divã”, no qual a análise freudiana se sentiria plena, mas principalmente, onde cada uma se presta à menorização da pessoa que é, não porque o não desejem, mas simplesmente por desconhecerem que podem ser mais, ser completamente mulheres, com ou sem filhos, com ou sem companheiros, procurando ser o que desejam ser, sem pudicos desvios ou censuras pessoais e sociais. Ler “O primo Basílio” permite visitar questões profundas da condição feminina: existimos por nós ou existimos no absoluto serviço ao outro? Todas estas mulheres servem. Luísa serve o marido e o primo. Juliana serve Jorge e Luísa. Joana serve Pedro, Jorge, Luísa e Juliana. Leopoldina “serve” quase todos e Felicidade serve o brilho do Conselheiro. 
Nenhuma delas serve a si própria. O título "O primo Basílio" mostra a mesquinhez do olhar ignorante do feminino. Foi essa a intenção crítica do autor? O "primo" é personagem constitutiva e nuclear ou assume, subliminarmente, a condição feminina?

terça-feira, 27 de outubro de 2015

"O Têpluquê" de Manuel António Pina, capítulos I e II, actividades e orientador de leitura



"A revolução das letras"
CAPÍTULO I
A ordem alfabética
CAPÍTULO II
As contas das letras

- Escreve palavras com três vogais e cinco consoantes como em Fernando ou palavras.

- Escreve palavras com três consoantes como em Manuel ou Ângela.

- Escreve palavras (em Português) só com consoantes ... consegues lê-las?

- Escreve uma frase com cinco palavras ... conta as vogais e as consoantes. Na frase que escreveste substitui duas palavras por outras, sem alterar o sentido da frase nem o número de vogais e consoantes.

- A ordem das palavras na frase é importante? Consegues explicar porquê?

- Quais são as palavras de que mais gostas? Escreve-as aqui.

- Quais são as tuas palavras privilegiadas? Porquê?

- Como se fazem as palavras?

- Como escolhes as palavras que utilizas?

- Tanto faz ou escolhes com ordem?

Esperamos as tuas dúvidas e respostas aqui

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Romantismo em "A cidade e as serras" de Eça de Queiroz


"Caminhante sobre mar de névoa", Caspar David Friedrich, 1818



O título “A cidade e as serras” revela uma categorização moderna e iluminista ao estabelecer a separação entre sujeito cognoscente e realidade a descobrir, ou seja, na relação que se estabelece entre a paisagem e o olhar que a define como paisagem não é a paisagem, enquanto entidade, que se dá, mas, o sujeito que olha, que a cria e define. O olhar humano atribui e caracteriza a paisagem como realidade para si, ao fazê-lo transforma o mundo em várias categorias antropológicas de segmentação e dissecação que criam a ilusão do controlo e manipulação do real.
Por outro lado, o título “A cidade e as serras”, apresenta uma distinção entre paisagens mais humanizadas e menos humanizadas, em que a categoria humano é recurso crítico para a avaliação de comportamentos e acções sociais, tecnológicas, científicas e filosóficas. A questão que se coloca diz respeito à definição de humano a partir da qual, Eça de Queiroz, constrói e caracteriza tipos, personagens e paisagem narrativa em que estes se movem.
Ao referir a Cidade como lugar de excesso, de “fartura” e de alienação assume a posição iluminista e romântica de retorno à “natureza” como recurso salvífico para uma humanidade envolta nas ilusões do progresso e da tecnologia. Sair da cidade e voltar à natureza, “às serras”, significa deixar vícios e, fundamentalmente, assumir que a dimensão social do ser humano tem limites ou fragilidades. A felicidade parece encontrar-se em momentos de afastamento da Cidade, o contrato social a que esta obriga, presente nos hábitos, nas rotinas, nas leis e planeamento urbano, apresenta-se como algo que desvirtua a natureza humana.
Esta abordagem antropológica, característica do pensamento moderno, faz-se por oposição ao modelo clássico de sociedade e humano, no qual a excelência só é possível no contexto social e comunitário. Polis, urbe e civitas demonstram etimologicamente a importância da construção social conjunta e o desenvolvimento da virtude social como consequência da vida em conjunto. Perdido este horizonte de virtude e natureza humana, que se concretiza na cidade, ao assumir-se que a principal característica do humano é a luta entre si ou competição para o acumular da propriedade individual, assumido como direito absoluto, a lei e a ordem da Cidade, surgem como imposições necessárias e apaziguadoras, sendo abandonada a ideia da sociabilidade como elemento constitutivo de humano. Assim, tal como Jean-Jacques Rousseau, em Emílio, propõe o regresso à educação natural longe da cidade e das suas alienações, Eça, apresenta a paisagem serrana e a simplicidade dos costumes na pequena aldeia ou quinta, como refúgio em que o humano reencontra a sua natureza numa relação romântica com o paraíso perdido.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Trilhando o mesmo caminho

"Tarde de domingo na ilha de Grande Jatte", Georges Seurat, 1884-1886

" Mas o que a Cidade mais deteriora no homem é a Inteligência, porque ou lha arregimenta dentro da banalidade ou lha empurra para a extravagância. Nesta densa e pairante camada de Ideias e Fórmulas que constitui a atmosfera mental das Cidades, o homem que a respira, nela envolto, só pensa todos os pensamentos já pensados, só exprime todas as expressões já exprimidas: - ou então, para se destacar na pardacenta e chata Rotina e trepar ao fŕagil andaime da gloríola, inventa num gemente esforço, inchando o crânio, uma novidade disforme que espante e detenha a multidão como um monstrengo numa feira. Todos, intelectualmente, são carneiros trilhando o mesmo trilho, balando o mesmo balido, com o focinho pendido para a poeira onde pisam, em fila, as pegadas pisadas; - e alguns são macacos, saltando no topo de mastros vistosos, com esgares e cabriolas."  


"A cidade e as serras", Eça de Queiroz, 1899


quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Com este labor e este pranto se edifica a abundância da Cidade

"Os comedores de batatas", Vincent Van Gogh, 1885


"E com este labor e este pranto dos pobres, meu Príncipe, se edifica a abundância da Cidade! Ei-la agora coberta de moradas em que eles não se abrigam; armazenada de estofos, com que eles não se agasalham; abarrotada de alimentos, com que eles se não saciam! Para eles só a neve, quando a neve cai, e entorpece e sepulta as criancinhas aninhadas pelos bancos das praças ou sob os arcos das pontes de Paris ... A neve cai, muda e branca na treva; as criancinhas gelam nos seus trapos e a polícia em torno, ronda atenta para que não seja perturbado o tépido sono daqueles que amam a neve, para patinar nos lagos do Bosque de Bolonha com peliças de três mil francos. Mas quê, meu Jacinto! a tua Civilização reclama insaciavelmente regalos e pompas, que só obterá, nesta amarga desarmonia social, se o Capital der ao Trabalho por cada arquejante esforço, uma migalha ratinhada. Irremediável, é pois, que incessantemente a plebe sirva, a plebe pene! A sua esfalfada miséria é a condição do esplendor sereno da Cidade."

A cidade e as serras, Eça de Queiroz, 1899

Sua Excelência sofre de fartura

"Bar em Folies-Bergère" Édouard Manet, 1882 
"Não se ocupara mais das suas Sociedades e Companhias nem dos Telefones de Constantinopla, nem das Religiões Esotéricas, nem do Bazar espiritualista, cujas cartas fechadas se amontoavam sobre a mesa de ébano, do onde o Grilo as varria tristemente como o lixo de uma vida finda. Também lentamente se despegava de todas as suas convivências. As páginas da Agenda cor-de-rosa murcha andavam desafogadas e brancas. E se ainda cedia a um passeio de mail-coach, ou a um convite para algum Castelo amigo dos arredores de Paris, era tão arrastadamente, com um esforço tão saturado ao enfiar o paletot leve, que me lembrava sempre um homem, depois de um gordo jantar de província, a estalar, que, por polidez ou em obediência a um dogma, devesse ainda comer uma lampreia de ovos!" 


A cidade e as serras, Eça de Queiroz, 1899

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Alguma coisa de celeste


"Natureza morta", Josefa  De Óbidos, (1630-1684)

"- Olha, acolá; onde está aquela fila de olmos, e há o riacho, já são terras do tio Adrião. Tem ali um pomar, que dá os melhores pêssegos de Portugal ... Hei-de pedir à prima Joaninha que te mande um cesto deles. E o doce que ela faz com esses pêssegos, menino, é alguma coisa de celeste. também lhe hei-de pedir que te mande o doce.
Ele ria:
- Será explorar de mais a prima Joaninha.
E eu (porquê?) recordei e atirei ao meu Príncipe estes dois versos de uma balada cavalheiresca, composta em Coimbra pelo meu pobre amigo Procópio:

- Manda-lhe um servo querido,
Bem hajas dona formosa!
E que lhe entregue um anel
E cum anel uma rosa,

Jacinto riu alegremente:
- Zé Fernandes, seria excessivo, só por causa de meia dúzia de pêssegos, e de um boião de doce."

"A cidade e as serras", Eça de Queiroz

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Deixar a alma preguiçar


"Lugar do Prado" Silva Porto, 1892


"A manhã, com o céu todo purificado pela trovoada da véspera, e as terras reverdecidas e lavadas pelos chuviscos ligeiros. Oferecia uma doçura luminosa, fina, fresca, que tornava doce, como diz o velho Eurípedes ou o velho Sófocles, mover o corpo e deixar a alma preguiçar, sem pressa nem cuidados. A estrada não tinha sombra, mas o sol batia muito de leve, e roçava-nos com uma carícia quase alada. O vale parecia a Jacinto, que nunca ali passara, uma pintura da Escola Francesa do século XVIII, tão graciosamente nele ondulavam as terras verdes e com tanta paz e frescura corria o risonho Serpão, e tão afáveis e prometedores de fartura e contentamento alvejavam os casais nas verduras tenras! Os nossos cavalos caminhavam num passo pensativo, gozando também a paz da manhã adorável. E não sei, nunca soube, que plantazinhas silvestres escondidas espalhavam um delicado aroma, que eu tantas vezes sentira, naquele caminho, ao começar o Outono."

A cidade e as serras, Eça de Queiroz

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Viste o comedouro?



Cozinha da casa de Manhufe, Amadeo de Sousa Cardozo, 1913

"Viste o comedouro?
-Não-
- Então vem admirar a beleza na simplicidade, bárbaro!
Era a mesma onde nós exaltáramos o arroz com favas - mas muito esfregada, muito caiada, com um rodapé besuntado de azul estridente, onde logo adivinhei a obra do meu Príncipe. Uma toalha de linho de Guimarães cobria a mesa, com as franjas roçando o soalho. No fundo dos pratos de louça forte reluzia um galo amarelo. Era o mesmo galo e a mesma louça em que na nossa casa, em Guiães, se servem os feijões aos cavadores ..."

"A cidade e as serras", Eça de Queiroz

Projecto Dianoia – Integra Saberes




Dianoia é um termo de origem grega que significa entendimento. Aprendemos a estabelecer relações entre assuntos e aprendizagens quando estas surgem de forma integrada, ou seja, relacionada, quando isso acontece dizemos que entendemos. Porque a tarefa de entender implica observar, ouvir, ler e perguntar, o projecto Dianoia – Integra Saberes quer ajudar nestas tarefas. Como? Propondo e orientando os leitores mais jovens e menos jovens na tarefa da leitura. Seleccionamos autores e textos, incluídos no PNL, construímos orientadores de leitura e comentários de recensão crítica. Mas, porque o apelo à leitura implica o diálogo com outros leitores, esperamos os vossos comentários e questões. Quer seja pai ou mãe de um jovem, quer sejas o jovem cheio de perguntas, quer seja a pessoa curiosa para quem a leitura é uma janela para um entendimento maior do mundo, estamos disponíveis para partilhar autores e orientar leitores, por isso elaboramos um calendário de actividades para o ano 2015/2016 publicado em:

e:

Aqui, os mais novos encontram três amigos: Sophia, Fhilos e Ócio que os ajudam na descoberta de sentido dos textos. Os jovens e adultos têm a companhia de Atena para acompanhar as suas dúvidas.
Visitem-nos!

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Civilização

 
- E os caixotes? Oh Jacinto? … Toda aquela imensa caixotaria que nós mandámos, abarrotada de Civilização? Soubeste? Apareceram?”

A cidade e as serras, Eça de Queiroz, capítulo IX
Comente a relação entre a pintura de Renoir e a escrita de Eça em "A cidade e as serras"

A cidade e as serras, Eça de Queiroz


Ler ou reler Eça de Queiroz é sempre uma actividade inicial na medida em que redescobrir um autor significa ler o que ainda não se tinha dado à interpretação e permite recordar o conselho dos primeiros anos de faculdade em que os professores nos diziam “não leiam um autor através dos seus comentadores”, não caí nessa tentação porque o tempo disponível para aulas, leituras e outras dinâmicas de socialização não era tanto quanto …
Isto quer dizer que o hábito de não depender de “comentadores” acontece por vezes involuntariamente e só mais tarde percebemos como é importante a intuição inicial do texto, livre de camadas contextuais de interpretação e leitura. Mas também quer dizer que todo o comentário ou orientação de leitura nos coloca diante do dilema: esperar pela leitura autónoma ou orientar a leitura? Deixar ler ou mediar? O acto de mediar implica interpretação, por isso o dilema, fornecer o texto e esperar pela descoberta ou orientar a própria descoberta procurando revelar pormenores motivadores?  Mas não parece ser esta a questão principal do comentário ou do orientador de leitura, o impulso de partilha da descoberta que surge aos nossos olhos, decorre da alegria da própria descoberta, não podemos deixar o efeito da aprendizagem calado em nós, é preciso comunicá-lo. Por isso, partilhar a leitura de um texto e autor é tão significativo.
Partilhar a leitura de Eça em “A cidade e as serras” encanta e diverte. Eça envolve-nos em narrativa poderosamente descritiva,  povoada de emoções e visões de análise sociológica e comportamental que permitem conversas, tertúlias e até pequenas introduções à sua leitura, como esta.
Ler Eça em “A cidade e as serras”, produz um contentamento tão contente que é impossível não o partilhar. O aborrecimento de Jacinto, a disponibilidade de Zé Fernandes, o ondular social e parisiense das damas e frequentadores do 202, a opulência tecnológica e consumista apresentados através de uma criticidade cómico-burlesca, orientam-nos  e permitem uma análise da vida urbana e burguesa do último quartel do século XIX, génese de todas as actualidades. A escrita realista descreve e caracteriza textos e contextos em que as personagens permitem “viver a pele de ...” de tal forma que passamos a habitar o 202 dos Campos Elísios como se de verdade aí habitássemos. A novela do aborrecimento de Jacinto acontece diante dos nossos olhos e vamos “palpitando” o seu desenlace: aborrece a ciência e o progresso, aborrece a burguesia desvirtuada. As serras são a nobre nobreza que remonta a tempos del'rei D. Dinis, a cidade a nobreza desvirtuada, transfigurada em burguesia, afastada do cuidado aos seus, fielmente representados na atempada missiva relatando o desabamento e desassossego dos ossos dos antepassados sob a tempestade, pressagiada na inundação do 202 e no episódio do elevador que justificaram a observação de Grilo: “Sua Excelência sofre de fartura.”
“Exprimindo, na face e na indecisão mole de um bocejo, o embaraço de viver!”, Jacinto, o Príncipe de José Fernandes, “começou a ler apaixonadamente, desde o Ecclesiastes até Schopenhauer, todos os líricos e todos os teóricos do Pessimismo.”
 “-Zé Fernandes, vou partir para Tormes.”
O cuidado aos antepassados fá-lo regressar às serras.
“- Ouve lá, Pimentinha … não está aí o Silvério?
- Não … O Silvério há quase dois meses que partiu para Castelo de Vide, ver a mãe que apanhou uma cornada de um boi!”
Enfim, as peripécias continuarão dando lugar a mudanças substanciais de atitude perante a vida e a chamada civilização, recuperando o aroma e sabor ditos naturais, reencontrando o paraíso quase perdido.


segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Calendário Dianoia - Integra Saberes 14/17 anos






Olá, sou Atena, tenho propostas de leitura e questões sobre textos, contextos e autores, podem contar comigo e questionar-me, enviem as vossas dúvidas e sugestões para a Dianoia - Integra saberes ao meu cuidado.
Os textos que escolhi, para questionar, a pensar em vós são os seguintes:



Data Autor
Título
12 Outubro
Eça de Queiróz
A cidade e as serras
9 Novembro
Eça de Queiróz
O primo Basílio
14 Dezembro
Eça de Queiróz
Os Maias
11 Janeiro
Nicolau Maquiavel
O Príncipe
15 Fevereiro
Luís Vaz de Camões
Os Lusíadas (excertos)
14 Março
Voltaire
Cândido ou o optimista
11 Abril
Mia Couto
Jesusalém
9 Maio
Valter Hugo Mãe
A máquina de fazer espanhóis
13 Junho
José Luís Peixoto
Morreste-me

Calendário Dianoia - Integra Saberes 2015/2016 para os mais jovens (7/13 anos)



Olá amigas e amigos, apresentamos o calendário Dianoia-Integra saberes para os mais jovens.
Eu, o Ócio, serei o vosso acompanhante durante este período, não esqueçam que a Sophia e o Fhilos estão na escola, eu, como sou gato, fico por aqui ...
Damos continuidade à publicação de orientadores de leitura, em cada terceira segunda-feira do mês, textos referidos pelo PNL - Plano Nacional de Leitura - distribuídos da seguinte forma:


7/13 anos ( do 2º ao 8º ano escolaridade)


Mês
Ano escolar
Autor
Título
Outubro 2º ano
M. A. Pina
O Têpluquê
Novembro 3º ano
A. Torrado
Mercador de coisa nenhuma
Dezembro 4º ano
Mia Couto
O gato e o escuro
Janeiro 5º ano
M. A. Pina
O pássaro na cabeça
Fevereiro 6º ano
G. M. Tavares
O senhor Valéry
Março 7º ano
J. E. Agualusa
A substância do amor e outras crónicas
Abril 8º ano
S. M. B. Andersen
Histórias da terra e do mar


Mas também queremos fazer coisas novas, para que o Fhilos e a Sophia possam participar ... por isso estamos a preparar pequenas actividades que possam frequentar em conjunto com um adulto. Vamos "Desalinhar os textos" e descobrir outras coisas que estes nos podem dizer. Sobre esta actividade daremos notícias nos próximos dias.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Mensagem de Sophia e Fhilos


Amigos mais jovens, não esquecemos que aguardam mais pistas de leitura e questões para vos inquietar. O calendário Dianoia - Integra Saberes, para  Setembro, orientou-se pelos eventos de apresentação e venda da Agenda 2015/2016, que têm  sido um sucesso e que todos estão a começar, agora que as aulas se iniciaram, a usar e a descobrir, por isso, os nossos amigos Sophia, Fhilos e Ócio têm estado, aparentemente, menos activos. 
Não, nada que se pareça com isso! Fhilos descobriu que os manuais de 3º ano são fantásticos e têm coisas novas sobre geografia e outras coisas que ele queria tanto saber! Sophia está deslumbrada com a nova escola do agrupamento, inscreveu-se no clube de dança e já tem imensos amigos! 
- Como foi possível? pensa Ócio. Sim, cada vez mais este gato é um pensador. Estamos convencidos, aqui na Dianoia, que tudo o que os outros se esquecem de pensar  Ócio vai pensando. - Não vos dava jeito ter um gato assim?
Bom, tudo isto para vos dizer que vos daremos notícias brevemente e podem continuar a contar connosco porque iremos de novo olhar e ver o Plano Nacional de Leitura - PNL - e diremos que livros a Sophia e o Fhilos, e talvez até o Ócio, andam a ler e a questionar. Combinado? Até daqui a dias, um beijinho para todos e boa semana de escola!

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Essencial



Os exemplos de currículos escolares desenvolvidos de modo integrado são vários, em Portugal e no resto do mundo. Este modelo de organização curricular e pedagógica define-se pela compreensão da existência e experiência humanas enquanto contínuo sistémico que decorre integrando tudo e todos. A existência deste modelo curricular, em que por exemplo as disciplinas são mais ou menos abolidas, a divisão de turmas é informal, os professores são partilhados e entendidos como recurso global da escola, a arquitectura do espaço se presta à comunicação e deambulação das pessoas sem preocupação maior de espaços interditos, a metodologia de trabalho abraça o projecto, o feedback é contínuo, a avaliação significa aprendizagem e os pais são considerados parceiros educativos, dizíamos, a existência deste modelo organizacional de currículo significa compreender a educação e a formação como processo em que a escolha e o poder de decidir são acções essenciais. Não porque as crianças e jovens possam sozinhos escolher, mas porque a escolha e a responsabilidade a esta associada são aspectos essenciais da vida do indivíduo e das comunidades. Depois, porque, aprender envolve motivação, sabemos que as escolhas pessoais e o envolvimento geram dinâmicas intrínsecas de “apego” e vinculação absolutamente essenciais para o comprometimento pessoal que a aprendizagem exige. Sintetizando, a liberdade de escolha, e não o acaso ou o despotismo, fizeram-nos humanos.
Tudo isto vem a propósito da definição de “um currículo essencial”.
No Brasil a expressão “cesta básica” surgiu referindo-se ao conjunto de alimentos considerados essenciais para que as famílias se mantivessem sem problemas de maior no que diz respeito à ingestão mínima de proteínas, minerais etc. Em Portugal esta cesta chamar-se-ia “cabaz essencial”.
Nas últimas semanas soubemos que os alunos do 9º do ensino básico, com idades entre os 14 e os 17 anos, não irão durante este ano lectivo e os próximos, ter acesso a conteúdos curriculares relativos à sexualidade, nomeadamente esclarecimentos e informação sobre meios contraceptivos em aulas de Ciências Naturais. Soubemos também que o apoio por parte do MEC, nomeadamente financeiro, ao ensino artístico, música incluída, estava seriamente em perigo. O que nos permite voltar aos dois conceitos que orientam esta reflexão: essencial e escolha.
O que significa, curricularmente falando, escolher? As escolas públicas podem escolher a sua estrutura curricular, podem apresentar variações na oferta educativa? Podem orientar e definir os seus projectos educativos de forma singular? Propondo percursos e caminhos diferentes? Os pais e os alunos podem optar por percursos curriculares “alternativos” e não exclusivamente pelos uniformizados?
Por último, como pode qualquer autoridade definir o que é essencial? A música não é essencial? Porquê? Não possui valor económico? Não podemos todos ser músicos? Possibilitar a todos formação musical não é essencial? Porquê? Podemos ser nós, cada um de nós, pais, mães, crianças e jovens a definir o nosso “essencial”? Poderemos entender que a essência do humano se faz pela escolha? Que a natureza humana é o que é porque não está fundamentalmente submetida a condicionalismos naturais mas possui uma extraordinária essência cultural que a faz fazer coisas e produzir, tantas vezes, inutilidades belas e autênticas, exactamente por isso, porque não servem para nada, mas são essenciais, como a música.

sábado, 19 de setembro de 2015

Desafio da filosofia



Como é possível a filosofia na cidade, qual é o seu lugar, se é que tem um, nas tarefas e preocupações humanas, quais são as condições políticas do seu exercício, do ensino que produz, quer para os filósofos quer, de modo diferente, para os não filósofos?”
A formulação desta questão é da responsabilidade conjunta de E. Cattin, B. Frydman, L. Jaffro e A. Petit no prólogo a “Leo Strauss: Art d'écrire, Politique, Philosophie”, Librairie Philosophique J. Vrin, Paris, 2001.
Leo Strauss nasceu a 20 de Setembro de 1899 em Kirchhain, Hesse, Alemanha, morre em Maryland, EUA, a 18 de Outubro de 1973.
Entre estas duas datas existe uma vida, um percurso geográfico, que o leva do continente Europeu até às ilhas Britânicas e, em 1938, para a América do Norte, e um pensamento, que se fez da condição de ser judeu, de ter convivido academicamente com Husserl e Heidegger, de ter em comum com Hannah Arendt o judaísmo e a filosofia, de ter, em primeiro lugar, estudado as tensões filosóficas que originaram o kantismo, a sua tese de licenciatura, 1921, é sobre teoria da ciência em H. Jacobi, de ter dialogado com Alexandre Kojève, Karl Lowith, Franz Rosenzweig, Alexandre Koyré e Hans Georg Gadamer. Entre 1949 e 1967 ensina na Universidade de Chicago.
Em 1941 escreve e publica em Social Research 8, nº 4, pp. 488-504, “Persecution and the Art of Writing”, texto que retoma em 1952.
O pequeno artigo inicia assim: “Num número considerável de países, que usufruíram durante cerca de uma centena de anos de liberdade de discussão pública praticamente total, esta liberdade está hoje suprimida e substituída pela obrigação de conformar os discursos às opiniões que o governo crê úteis ou que considera mais importantes. Talvez valha a pena examinar brevemente os efeitos deste constrangimento ou desta perseguição no pensamento e também na acção.
Amanhã, 20 de Setembro de 2015, passam 116 anos sobre o nascimento de Leo Strauss. Cerca de 2550 anos nos separam dos dias do julgamento e condenação à morte de Sócrates, em Atenas, e 359 anos da sentença de excomunhão de Baruch de Espinoza, proferida pelo Conselho de Anciões da Sinagoga da comunidade portuguesa de Amesterdão, a 27 de Julho de 1656. O cineasta iraniano, Jafar Panahi, está preso desde Março de 2010 e o artista activista dos direitos humanos, Ai Weiwei, preso no aeroporto de Pequim a 3 de Abril de 2011 só há pouco foi libertado, os dois têm em comum o facto de questionarem a tirania e o despotismo do exercício governativo dos seus estados.
Os sistemas políticos e os paradigmas científicos têm tendência a perseguir aqueles que dizem e manifestam princípios de acção diferentes dos instituídos. Há cerca de 2500 anos Platão escrevia o Livro VII da República, aí apresenta-nos um cenário, conhecido como Alegoria da Caverna, no qual estabelece paralelismo entre a vida nas sombras da caverna e a vida humana, terrível analogia, principalmente pelo desconhecimento e inconsciência da nossa condição de escravos presos a um mundo de aparências que tomamos por reais. Sair da caverna significa questionar o modelo instituído, libertando-se do paradigma de análise vigente e, principalmente, dizer aos outros que estão enganados, que o que supõem ser verdade não o é. Este papel, segundo Platão, caberá ao filósofo, entendido como educador ou orientador das massas, estas, não sendo irracionais, não gostam de ser convencidas, logo, o que fazem é a perseguição do filósofo. Para se defender, segundo Leo Strauss, este desenvolve formas exotéricas de escrita, por isso precisamos aprender a ler entre linhas, para entender o pensamento dos que querendo pensar livremente são perseguidos, exactamente por não aceitarem as ortodoxias vigentes.
A investigação livre e a comunicação dos seus resultados supõe que a educação é capaz de fazer leitores e ouvintes disponíveis para substituir antigos modelos de compreensão do real por outros, mas, da mesma forma que para aprender preciso de voluntariamente substituir conhecimentos antigos por novas propostas de pesquisa, o que significa que aprender resulta de um acto voluntário de escolha em que abandono o já conhecido e abraço o desconhecido, também o investigador e o filósofo precisam de estar atentos ao esforço de reconversão que pedem aos não investigadores e aos não filósofos ou correm o risco de serem ostracizados e porventura perseguidos. Ainda que Platão pretendesse atribuir ao filósofo o papel de orientador e líder social, a natureza da filosofia exige a liberdade e o não comprometimento como única forma de acção, por isso o filósofo está ao serviço da cidade, da polis, mas não pode estar com a cidade ou correrá dois riscos: ou ser perseguido ou deixar de ser filósofo. A opção pela filosofia é uma escolha única que, muitas vezes, implica solidão, Bento de Espinoza, viveu sozinho o resto dos seus dias.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Tijolos

Existem vários tipos de tijolos, todos eles servem para construir algo maior. Os tijolos são partes constituintes de um todo que se desenhou e já se construiu ou se pretende construir, nesse caso os tijolos estão simplesmente em estaleiro aguardando que o empenho e criatividade de alguém faça deles algo maior do que a sua existência solitária. Cada tijolo encerra em si a possibilidade de, ao juntar-se a outros, participar na edificação de algo fantástico. As crianças sabem isso muito bem. Exactamente por isto a Lego consegue manter-se em actividade desde a primeira metade do século XX, não sendo por acaso que o seu criador era um carpinteiro. A empresa atravessou momentos difíceis no fim do mesmo século, quando de forma extraordinariamente simplista se assumiu que a operatividade e o manuseamento de objectos poderiam e seriam substituídos pelo virtual e pelo digital. As vendas caíram, a Lego teve de repensar os seus tijolos, ou seja, a essência do seu negócio, o produto a apresentar aos seus clientes. Os seus clientes preferenciais são crianças, estas sabem bem o que fazer com tijolos. Construir universos e expandir a sua criatividade treinando a percepção das suas potencialidades e competências. Ou seja, desenvolvendo todas as dimensões da sua humanidade.
Tudo isto vem a propósito de dois artigos, hoje publicados no jornal Público, um sobre os desafios da Lego, outro sobre o afastamento de conteúdos relativos à educação sexual da disciplina de Ciências da Natureza, no 9º do ensino básico.
Os dois lembraram-me o Despacho nº 17169/2011 do Gabinete do Ministro, Ministério da Educação e Ciência.
Diz-se aí: “O currículo deve incidir sobre conteúdos temáticos, destacando o conhecimento essencial e a compreensão da realidade que permita aos alunos tomarem o seu lugar como membros instruídos da sociedade.”
Eis que reencontramos a temática da essência. O que se entende por este conceito e como definir o que é essencial para algo ou alguém? Para algo parece ser eminentemente fácil, não posso chamar sopa de espinafres a um caldo sem espinafres, a sua essência está nos espinafres. Também os gestores da Lego perceberam que a essência desta está nos tijolos de plástico que permitem reconstruir, recriar e inventar novos mundos enquanto as crianças crescem e se fazem adultos criativos e empreendedores. Na política curricular definida pelo MEC parece existir alguma indefinição relativa aos conteúdos e aprendizagens consideradas essenciais. A definição de currículo essencial necessita de reflexão e ponderação necessariamente constantes. O essencial em tempo de “crises”, seja por carências financeiras, económicas, éticas ou outras, define-se por carência e não por substância, logo, não pode ser considerado como condição suficiente e necessária, mas deve ser ponderado enquanto contingente e temporário, ou seja, quando se gere património comum ou público em tempo de escassez tomam-se opções que não podem ter continuidade temporal sem serem revistas e ponderadas ou alteradas, ao contrário dos tijolos Lego, que parecem demonstrar uma parte fundamental da essência humana, a ausência de oferta curricular diversificada a adolescentes relativa à sexualidade humana, que na sua essência não se pode confundir com reprodução, apresenta-se como um erro essencial numa idade em que a “criatividade” não se exerce somente com tijolos Lego e a compreensão da realidade deve ser ampla. Fica a pergunta: - Que estrutura curricular devemos assegurar nas escolas portuguesas para que todos tenham os tijolos fundamentais para construir futuro e sentido?

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Que agenda é esta?


A agenda Dianoia - Integra Saberes 2015/2016 é um objecto em suporte papel em que o tempo de crianças, jovens e adultos pode ser planeado, seja este de ócio ou de negócio, porque o tempo de ócio é fundamental para planear o de realização, propomos espaço e folhas em branco nas quais os pensamentos, os desenhos ou as notas pessoais podem ganhar forma. 
Por outro lado, porque acreditamos na leitura como fonte inesgotável de motivação e inspiração para a aprendizagem, propomos, ao longo dos meses, obras de autores portugueses, referenciados no PNL, para jovens entre os 8 e os 14 anos, estas propostas são acompanhadas pelos orientadores de leitura que constituíram o projecto "Leituras de Verão". As questões que colocamos aos textos e aos leitores supõem a leitura e o diálogo livre e aberto, sem receio de respostas incorrectas ou interpretações desviantes. O prazer de ler é o objectivo que permite alcançar a atitude crítica e a curiosidade por outro livro ou autor, simultaneamente promove a escrita e a gestão pessoal do tempo de ócio/negócio em que a descoberta do mundo e de si acontecem.

Obras e autores propostos:

(8 aos 11 anos)



"O Cavaleiro da Dinamarca", Sophia de Mello Bryner Andersen
"Os Piratas", Manuel António Pina
"Herbário", Jorge Sousa Braga
"A Maior Flor do Mundo", José Saramago
"Histórias em ponto de contar", António Torrado e Maria Alberta Menéres




(12 aos 14 anos)



"Ilíada", adap. de João de Barros
"Odisseia", adap. de João de Barros
"A Eneida", adap. de João de Barros
"Os Lusíadas para gente nova", Vasco Graça Moura
"Aquilo que os olhos vêem ou o Adamastor", Manuel António Pina

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

O mistério da estrada de Sintra, Eça de Queiroz - orientador de leitura





- Qual a identidade do cadáver, presente na primeira parte do livro?
- Quem eram os mascarados?
- Quem era A.M.C.?
- De quem era o cabelo louro que o doutor encontrou junto da cama?
- Quantas cartas recebeu o redactor do Diário de Notícias em Julho de 1870 relativas a este mistério?
- O “mascarado mais alto” visitava recorrentemente uma casa em Lisboa, de quem era essa casa?
- Em que circunstâncias conhece o “inglês”?
- Quem era Carmem?
- Em que circunstâncias a condessa diz: “Rytmel, voltemos para malta.”?
- Quem tentou matar Rytmel em Malta?
- Quando morre Carmem?
- Porque diz a condessa para A.M.C. :”Quer prender-me? Aqui me tem. Leve-me.”?
- Que disse Rytmel à condessa antes de beber do copo com água e ópio?
- Qual o destino da condessa de W.?

Limpezas e arrumações




Limpezas e arrumações! De volta ao trabalho e à escola …
Sophia e Fhilos sempre adoraram entrar na biblioteca da avó, mas limpezas e arrumações!
  • Ora vamos lá miúdos! Prevenir o ataque dos bichos prata que gostam mais de livros do que nós! Disse a Avó. 

  • Bichos de prata” ? Que mais coisas existem na tua biblioteca Avó? Gostam mais de livros do que nós!? Porquê? Perguntou Fhilos.

  • Livros e colecções, um sofá de orelhas de que gosto muito, mas o que quero é catalogar os meus livros, agrupá-los e saber com facilidade onde estão. Enquanto falava a Avó ia retirando livros, passava o espanador e punha-os de lado.
  • Olhem vêem este? “O mistério da estrada de Sintra”, já nem sabia se o tinha, é um dos meus queirosianos …
  • Queirosianos …? Se fosse só Fhilos que não sabia “coisas” … pensava Sophia.
  • Queirosiano, de Eça de Queiróz, escritor português, da segunda metade do século XIX.
  • Isso foi há imenso! Disseram em coro Sophia e Fhilos.
  • Não há nenhum problema, então e a Ilíada e Odisseia de Homero, escritas muitos séculos antes de Cristo! Este “Mistério da estrada de Sintra” é bem giro, parece um policial, há uns mascarados e um cadáver, tudo começa perto de Cacém, mas depois vai até Malta, linda aquela ilha … tenho de lá voltar. Disse pensativa.
  • Vou voltar a ler este “mistério”, Fhilos, separa este livro, coloca ali na mesa junto do sofá.

Mistério ...


segunda-feira, 24 de agosto de 2015

O que significa proibir?


Orientador de leitura - Histórias em ponto de contar, António Torrado e Maria Alberta Menéres escreveram, sobre desenhos de Amadeo de Souza-Cardoso




«“Sobre desenhos de ...” Quem seria este senhor? António Torrado e Maria Aberta Menéres eu sei, já li coisas escritas por eles … Mas Amadeo de Souza-Cardoso …?»

Sophia tinha descoberto este livro no dia em que estiveram com a Avó no CAM, Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, foram passear no jardim e ver os gansos do Nilo, sim, do Nilo, mas isso é outra história... Depois almoçaram no self-service, muito giro escolher quatro ou seis tipos de alimentos diferentes, o prato ficou lindo com massas, “peixinhos da horta”, um queijinho e esparregado … bolinhas de esparregado... Bem depois de almoçarem descobriram o balcão da livraria e Fhilos reparou na capa do livro … pintas e preto e branco, o veado e o cão tinham pintas, os cavalos eram muito elegantes, as pessoas desenhadas de forma diferente … Compraram o livro, Fhilos está a desenhar animais e Sophia a tentar saber quem foi este pintor...e, claro, a ler!

As questões de Sophia:

  • Qual o significado dos seguintes versos: “bordas a meu lado da orla do dia à bainha da noite”? 
  • Porque se dividem os reinos?
  • Porque não gostam as pessoas de dividir aquilo de que gostam com os outros?
  • O que significa proibir?
  • Quem pode proibir?
  • Os países podem mandar construir muralhas à sua roda?
  • É possível obedecer sempre?
  • Os sonhos correm connosco?
  • Quando é a hora do fechar dos sonhos?