segunda-feira, 30 de novembro de 2015

"O mercador de coisa nenhuma", António Torrado, desorientador de leitura



Por favor,

- Enumera as coisas "fastidiosas" que realizas ao longo do dia.
- Descreve todas as coisas que consegues dobrar.
- Diz-nos o que pode ser escovado.
- Explica-nos como limpas a tua mochila e os tapetes do teu quarto.

De seguida podes responder a estas perguntas:

- Podemos escutar o progredir das raízes através da terra?
- Os caules das plantas erguem-se pacientemente em direcção a luz?
- As formigas podem perder-se?
- Podemos vender grãos de areia?
- Quantos grãos de areia poderão existir?
- Uma gota de água poderá ser importante?
- Que coisa nenhuma gostarias de vender?
- Quantas coisas podem vir depois de um talvez?


Podes enviar-nos as tuas respostas e dúvidas para aqui

Mas também deves pedir que procurem contigo este livro: "O mercador de coisa nenhuma" de António Torrado

domingo, 29 de novembro de 2015

Deus, (...) está longe, não se ocupa do que fazem as mulheres.

"Nu feminino no divã", Henri Toulouse-Lautrec, 1882


"A sala agora estava um pouco escura.
- Pois não te parece? - perguntou ela.
Aquela conversa embaraçava Luísa: sentia-se corar; mas o crepúsculo, as palavras de Leopoldina davam-lhe como um enfraquecimento de uma tentação. Declarou todavia "imoral" semelhante ideia.
- Imoral, porquê?
Luísa falou vagamente nos "deveres", na "religião". Mas os "deveres" irritavam Leopoldina. Se havia uma coisa que a fizesse sair de si - dizia - era ouvir falar em deveres! ...
- Deveres? Para com quem? Para um maroto como meu marido?
Calou-se, passeando pela sala, excitada:
- E enquanto a religião, histórias! A mim me dizia o padre Estevão, o de luneta que tem os dentes bonitos, que me dava todas as absolvições, se eu fosse com ele a Carriche!
- Ah, os padres ... - murmurou Luísa.
- Os padres quê? São a religião! Nunca vi outra. Deus, esse, minha rica, está longe, não se ocupa do que fazem as mulheres."

"O primo Basílio", Eça de Queiroz

Joana - "O primo Basílio", Eça de Queiroz


"Mulher costurando a liga", Edouard Manet, 1878

"Foi à cozinha desabafar com a Joana. Mas a rapariga, estirada numa cadeira, dormitava.
Fora com o seu Pedro ao Alto de S. João. E toda a tarde tinham passeado no cemitério, muito juntos, admirando os jazigos, soletrando os epitáfios, beijocando-se nos recantos que os chorões escureciam, e regalando-se do ar dos ciprestes e das relvas dos mortos. Voltaram por casa da Serena, entraram a bebericar um quartilho no Espregueira ... Tarde cheia! Estava derreada da soalheira, do pó, da admiração de tanto túmulo rico, do homem, e da pinguita de vinho.
O que ia, era refastelar-se para a cama!"

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Leopoldina - embaraços não faltam

"Jeanne Samary", Pierre-Auguste Renoir, 1877


"Leopoldina deu um salto na voltaire. Filhos! Credo, que nem falasse em semelhante coisa! Todos os dias dava graças a Deus em os não ter!
- Que horror! - Exclamou com convicção ... - O incómodo todo o tempo que se está! ... As despesas, os trabalhos, as doenças! Deus me livre! É uma prisão! E depois quando crescem, dão fé de tudo, palram, vão dizer ... Uma mulher com filhos está inútil para tudo, está atada de pés e mãos! Não há prazer na vida. É estar ali a aturá-los ... Credo! Eu? Que deus me castigue, mas se tivesse essa desgraça parece-me que ia ter com a velha da Travessa da Palha! 
- Que velha? Perguntou Luísa.
Leopoldina explicou. Luísa achava uma «infâmia». A outra encolheu os ombros, acrescentou: 
- E depois, minha rica, é que uma mulher estraga-se: não há beleza de corpo que resista. Perde-se o melhor. Quando se é como a tua amiga, a D. Felicidade, enfim! ... mas quando se é direitinha e arranjadinha! ... Nada, minha rica! Embaraços não faltam!"

"O primo Basílio", Eça de Queiroz

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Felicidade


" Marcelle-Lender", Henri Toulouse-Lautrec, 1895


"Acácio tornara-se a sua mania: admirava a sua figura e a sua gravidade, arregalava grandes olhos para a sua eloquência, achava-o numa «linda posição». O Conselheiro era a sua ambição e o seu vício! havia sobretudo nele uma beleza, cuja contemplação demorada a estonteava como um vinho forte: era a calva. Sempre tivera o gosto perverso de certas mulheres pela calva dos homens,  e aquele apetite, insatisfeito inflamara-se com a idade. Quando se punha a olhar para a calva do Conselheiro, larga, redonda, polida, brilhante às luzes, uma transpiração ansiosa humedecia-lhe as costas, os olhos dardejavam-lhe tinha uma vontade absurda, ávida, de lhe deitar as mãos, palpá-la, sentir-lhe as formas, amassá-la, penetrar-se dela! Mas disfarçava, punha-se a falar alto com um sorriso parvo, abanava-se convulsivamente, e o suor gotejava-lhe nas roscas anafadas do pescoço. Ia para casa rezar estações, impunha-se penitências de muitas coroas à virgem; mas apenas as orações findavam, começava o temperamento a latejar. E a boa, a pobre D. Felicidade tinha agora pesadelos lascivos e as melancolias do histerismo velho! A indiferença do Conselheiro irritava-a mais: nenhum olhar, nenhum suspiro, nenhuma revelação amorosa o comovia! Era para com ela glacial e polido."

"O primo Basílio", Eça de Queiroz

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Juliana: a necessidade de se constranger ...


"Só", Toulouse-Lautrec, 1896


«A necessidade de se constranger trouxe-lhe o hábito de odiar: odiou sobretudo as patroas, com um ódio irracional e pueril. Tivera-as ricas, com palacetes, e pobres, mulheres de empregados, velhas e raparigas, coléricas e pacientes - odiava-as a todas, sem diferença. É patroa e basta! Pela mais simples palavra, pelo acto mais trivial! Se as via sentadas: "Anda, refastela-te, que a moura trabalha!". Se as vir sair: "vai-te, a negra fica cá no buraco!". Cada riso delas era uma ofensa à sua tristeza doentia; cada vestido novo uma afronta ao seu velho vestido de merino tingido. Detestava-as na alegria dos filhos e nas prosperidades da casa. Rogava-lhes pragas. Se os amos tinham um dia de contrariedade, ou via as caras tristes, cantarolava todo o dia em voz de falsete a "Carta Adorada!". Com que gosto trazia a conta retardada de um credor impaciente, quando pressentia embaraços na casa! "Este papel!", gritava com uma voz estridente, "diz que não se vai embora sem uma resposta!". Todos os lutos a deleitavam - e sob o xale preto, que lhe tinham comprado, tinha palpitações de regozijo. Tinha visto morrer criancinhas, e nem a aflição das mães a comovera; encolhia os ombros: "Vai dali, vai fazer outro. Cabras!"»

Luísa

"Jovem rapariga", Jean Renoir, 1876


"Veio encostar-se à voltaire de Jorge, passou-lhe lentamente a mão sobre o cabelo preto e anelado. Jorge olhou-a, triste já da separação: os dois primeiros botões do seu roupão estavam desapertados; via-se o começo do peito de uma brancura muito tenra, a rendinha da camisa: muito castamente Jorge abotoou-lhos."


"O primo Basílio", 
Eça de Queiroz, 1878

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Lampreia de ovos!



"Geraldo, o seu pobre Geraldo, era o pai de Jorge. Acácio fora seu íntimo. Eram vizinhos. Acácio tocava então rebeca e, como Geraldo tocava flauta, faziam duos, pertenciam mesmo à Filarmónica da Rua de são José. Depois Acácio, quando entrou nas repartições do Estado, por escrúpulo e por dignidade abandonou a rebeca, os sentimentos ternos, os serões joviais da Filarmónica. Entregou-se todo à estatística. Mas conservou-se muito leal a Geraldo; continuou mesmo a Jorge aquela amizade vigilante; fora padrinho do seu casamento, vinha vê-lo todos os domingos, e, no dia dos seus anos, mandava-lhe pontualmente, com uma carta de felicitações, uma lampreia de ovos."

"O primo Basílio", Eça de Queiroz

A mulher n' «O primo Basílio» de Eça de Queiroz

Salão na Rue des Moulins, Toulouse-Lautrec, 1894


Apesar do título, "O primo Basílio", referindo-se a um dos personagens masculinos, a extensão dos vários enredos da escrita de Eça nesta obra faz-se analisando o mundo feminino. A personagem “Luísa” constitui a plataforma em torno da qual outros modelos femininos desenrolam a sua caracterização e acção. Juliana, a empregada “de dentro”, que de si nada tem, a não ser o amor pelas botinas, símbolo e diferenciador de sub-classe social de quem não calça tamanco, impotente no desejo sexual, que calou ao longo dos anos e na incapacidade de alcançar outros níveis de “abastança”, ser capelista era o seu desejo, transforma-se na figura primordial da novela apresentada, já que lhe cabe o desfecho real da intriga: o roubo da carta, a chantagem pecuniária,  psicológica, social e pessoal, que a austeridade da sua vida miserável a obriga a realizar sobre Luísa, são características apresentadas pela narrativa que envolve o leitor em mundos de imaginação da solidão e ausência de sentido que nem na morte alcança o aconchego de um velório acompanhado, restando-lhe um conjunto de atitudes desprezíveis e mesquinhas. Joana, a cozinheira,  de bem com a condição que a vida lhe deu e com Pedro que usualmente leva “para dentro”. Leopoldina, realizada sexualmente, desventurada socialmente. Felicidade, suposta alta-burguesa, infeliz nos amores e na inexistente vida sexual, exuberante nas manifestações interiores e físicas. Estas cinco mulheres estão unidas pela ausência da maternidade. Não existem filhos, “rebentos” que justifiquem e atribuam sentido à sua existência, dão-se, assim, a comportamentos “desviantes”, cada uma no seu território psicológico e social, cada uma no seu “divã”, no qual a análise freudiana se sentiria plena, mas principalmente, onde cada uma se presta à menorização da pessoa que é, não porque o não desejem, mas simplesmente por desconhecerem que podem ser mais, ser completamente mulheres, com ou sem filhos, com ou sem companheiros, procurando ser o que desejam ser, sem pudicos desvios ou censuras pessoais e sociais. Ler “O primo Basílio” permite visitar questões profundas da condição feminina: existimos por nós ou existimos no absoluto serviço ao outro? Todas estas mulheres servem. Luísa serve o marido e o primo. Juliana serve Jorge e Luísa. Joana serve Pedro, Jorge, Luísa e Juliana. Leopoldina “serve” quase todos e Felicidade serve o brilho do Conselheiro. 
Nenhuma delas serve a si própria. O título "O primo Basílio" mostra a mesquinhez do olhar ignorante do feminino. Foi essa a intenção crítica do autor? O "primo" é personagem constitutiva e nuclear ou assume, subliminarmente, a condição feminina?