terça-feira, 19 de maio de 2015


 Férias com a Sophia e o Fhilos

Lembro-me de ter seis anos e ficar a imaginar o tempo que ainda não tinha vivido, de olhar na direcção do final do dia e imaginar o que não sabia. A casa dos meus pais está praticamente ordenada com os pontos cardeais, de tal forma que não foi difícil aos meus filhos desenharem na parede sul um relógio de sol que ao longo do ano vai animando grandes conversas sobre a sua “óptima” orientação e a diferença entre horas solares e convenções na medida do tempo. Bem, quando eu tinha seis anos sentava-me num degrau lá de casa virado a ocidente e imaginava o “mar de Santa Cruz”, era e é o meu oceano Atlântico, chegava a conseguir ouvi-lo nos cerca de oito quilómetros de distância que se colocavam entre mim e ele. As tardes de verão numa casa de aldeia tinham formigas, livros, a minha amiga Mimi, rega ao fim do dia, muitas horas de pensamento e a sensação de que o que me rodeava era imenso mas ao mesmo tempo estava próximo, exactamente porque me rodeava e porque se deixava contemplar e pensar. Claro que em momentos fundamentais deste ócio tão apreciado por mim, a voz da minha Mãe interrompia este estado de semi-vegília em que adorava deixar-me envolver e algumas tarefas se impunham, de qualquer forma o meu verão percorria-se entre o calor destas tardes, por vezes acompanhadas por um vento Suão que me deixava prostrada debaixo da figueira ou o fresco absoluto de Santa Cruz na casa alugada ao Senhor Marmelo. Mas, era o início de Setembro que mais me fazia pensar, eram tão acolhedoras a luz e a temperatura, (desde essa altura o meu ciclo anual funciona tendo início em Setembro), passava nas macieiras do meu Avô e cheirava-as antes de as trincar, ia pelo carreiro até ao poço e olhava a Serra de Montejunto, continuava um pouco mais e reencontrava o aroma concentrado nas maçãs que a Tia Maria tinha recolhido e guardava em cima de restolho e palha seca, numa antiga cortelha dos porcos. Só cheirava a feno seco e a maçãs! Acho que é por isso que há um sabonete que se chama Feno de Portugal!
Aos sete ou oito anos a Mafalda chegou a minha casa acompanhada por imensos Patinhas, Urtigões e também o Mortadelo y Filemón, em castelhano mesmo, vindos pelas férias da Mimi e do Zé, que adoravam Sevilha e Barcelona, mas que gostavam, principalmente, de ler coisas de miúdos, como a minha Mãe dizia, o bom de tudo isso é que a meio das férias toda essa literatura entrava lá em casa e fazia as minhas delícias, minhas e do meu irmão.
Para além do imenso privilégio de ter, desde sempre, conhecido a Mimi, a pessoa que me inquietou, também tinha a Tia Umbelina que me punha na ordem e me dava bolachas, o Tio Quim que me levava a passear em Lisboa, o Tio Joaquim que tinha livros do Sadokam e de Cowboys, o meu Padrinho com quem andava de automóvel, tinha, principalmente, a possibilidade de não fazer nada em parte fundamental do meu tempo de férias escolares, por isso a sensação mais profunda que tenho de mim é a desse tempo em que me ía apercebendo dum mundo exterior e interior, um por integração do outro.
Usufruí ociosamente do tempo de crescer, muitas foram as formigas que admirei como muitos foram os ralhetes pela demora em trazer a água fresca ou o tempo que levei a encher o tanque com água, as minhas férias foram salpicadas pela descoberta do mundo em que vivia, do mundo que imaginava e dos adultos que me motivavam. Esta sensação/saber desenvolveu-se e transformou-se em conhecimento profissional que permite confirmar a importância da descoberta do mundo para o desenvolvimento de crianças e jovens e da necessidade de tempos de ócio em que o pensamento surge e a acção se planeia, mesmo que seja somente o plano para invadir o formigueiro e ver como é!
O projecto “Férias com a Sophia e o Fhilos” pretende ser para as crianças e jovens actuais o espaço em que o mundo é questionado e anima o nosso pensamento, seja através da leitura, seja através do cinema, da banda desenhada, da dramatização ou do passeio na cidade. Pretende-se ouvir os jovens e deixá-los perguntar, pesquisar e, principalmente, usufruir do seu tempo de ócio, acompanhados por uma tutoria aberta que integra os conteúdos curriculares de forma a dispor para a aprendizagem e os resultados escolares. Porque acreditamos no acompanhamento e tutoria para a descoberta e o conhecimento, as “Férias com a Sophia e o Fhilos” são espaço orientado para a reflexão, a análise e o questionamento do mundo actual acompanhados pela problematização filosófica que, acreditamos, é capaz de motivar para as aprendizagens de forma a tornar possível que Setembro continue a ser e a proporcionar o reencontro com o que ainda não sabemos de modo tranquilo e confiante.