terça-feira, 13 de outubro de 2015

A cidade e as serras, Eça de Queiroz


Ler ou reler Eça de Queiroz é sempre uma actividade inicial na medida em que redescobrir um autor significa ler o que ainda não se tinha dado à interpretação e permite recordar o conselho dos primeiros anos de faculdade em que os professores nos diziam “não leiam um autor através dos seus comentadores”, não caí nessa tentação porque o tempo disponível para aulas, leituras e outras dinâmicas de socialização não era tanto quanto …
Isto quer dizer que o hábito de não depender de “comentadores” acontece por vezes involuntariamente e só mais tarde percebemos como é importante a intuição inicial do texto, livre de camadas contextuais de interpretação e leitura. Mas também quer dizer que todo o comentário ou orientação de leitura nos coloca diante do dilema: esperar pela leitura autónoma ou orientar a leitura? Deixar ler ou mediar? O acto de mediar implica interpretação, por isso o dilema, fornecer o texto e esperar pela descoberta ou orientar a própria descoberta procurando revelar pormenores motivadores?  Mas não parece ser esta a questão principal do comentário ou do orientador de leitura, o impulso de partilha da descoberta que surge aos nossos olhos, decorre da alegria da própria descoberta, não podemos deixar o efeito da aprendizagem calado em nós, é preciso comunicá-lo. Por isso, partilhar a leitura de um texto e autor é tão significativo.
Partilhar a leitura de Eça em “A cidade e as serras” encanta e diverte. Eça envolve-nos em narrativa poderosamente descritiva,  povoada de emoções e visões de análise sociológica e comportamental que permitem conversas, tertúlias e até pequenas introduções à sua leitura, como esta.
Ler Eça em “A cidade e as serras”, produz um contentamento tão contente que é impossível não o partilhar. O aborrecimento de Jacinto, a disponibilidade de Zé Fernandes, o ondular social e parisiense das damas e frequentadores do 202, a opulência tecnológica e consumista apresentados através de uma criticidade cómico-burlesca, orientam-nos  e permitem uma análise da vida urbana e burguesa do último quartel do século XIX, génese de todas as actualidades. A escrita realista descreve e caracteriza textos e contextos em que as personagens permitem “viver a pele de ...” de tal forma que passamos a habitar o 202 dos Campos Elísios como se de verdade aí habitássemos. A novela do aborrecimento de Jacinto acontece diante dos nossos olhos e vamos “palpitando” o seu desenlace: aborrece a ciência e o progresso, aborrece a burguesia desvirtuada. As serras são a nobre nobreza que remonta a tempos del'rei D. Dinis, a cidade a nobreza desvirtuada, transfigurada em burguesia, afastada do cuidado aos seus, fielmente representados na atempada missiva relatando o desabamento e desassossego dos ossos dos antepassados sob a tempestade, pressagiada na inundação do 202 e no episódio do elevador que justificaram a observação de Grilo: “Sua Excelência sofre de fartura.”
“Exprimindo, na face e na indecisão mole de um bocejo, o embaraço de viver!”, Jacinto, o Príncipe de José Fernandes, “começou a ler apaixonadamente, desde o Ecclesiastes até Schopenhauer, todos os líricos e todos os teóricos do Pessimismo.”
 “-Zé Fernandes, vou partir para Tormes.”
O cuidado aos antepassados fá-lo regressar às serras.
“- Ouve lá, Pimentinha … não está aí o Silvério?
- Não … O Silvério há quase dois meses que partiu para Castelo de Vide, ver a mãe que apanhou uma cornada de um boi!”
Enfim, as peripécias continuarão dando lugar a mudanças substanciais de atitude perante a vida e a chamada civilização, recuperando o aroma e sabor ditos naturais, reencontrando o paraíso quase perdido.


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