sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Romantismo em "A cidade e as serras" de Eça de Queiroz


"Caminhante sobre mar de névoa", Caspar David Friedrich, 1818



O título “A cidade e as serras” revela uma categorização moderna e iluminista ao estabelecer a separação entre sujeito cognoscente e realidade a descobrir, ou seja, na relação que se estabelece entre a paisagem e o olhar que a define como paisagem não é a paisagem, enquanto entidade, que se dá, mas, o sujeito que olha, que a cria e define. O olhar humano atribui e caracteriza a paisagem como realidade para si, ao fazê-lo transforma o mundo em várias categorias antropológicas de segmentação e dissecação que criam a ilusão do controlo e manipulação do real.
Por outro lado, o título “A cidade e as serras”, apresenta uma distinção entre paisagens mais humanizadas e menos humanizadas, em que a categoria humano é recurso crítico para a avaliação de comportamentos e acções sociais, tecnológicas, científicas e filosóficas. A questão que se coloca diz respeito à definição de humano a partir da qual, Eça de Queiroz, constrói e caracteriza tipos, personagens e paisagem narrativa em que estes se movem.
Ao referir a Cidade como lugar de excesso, de “fartura” e de alienação assume a posição iluminista e romântica de retorno à “natureza” como recurso salvífico para uma humanidade envolta nas ilusões do progresso e da tecnologia. Sair da cidade e voltar à natureza, “às serras”, significa deixar vícios e, fundamentalmente, assumir que a dimensão social do ser humano tem limites ou fragilidades. A felicidade parece encontrar-se em momentos de afastamento da Cidade, o contrato social a que esta obriga, presente nos hábitos, nas rotinas, nas leis e planeamento urbano, apresenta-se como algo que desvirtua a natureza humana.
Esta abordagem antropológica, característica do pensamento moderno, faz-se por oposição ao modelo clássico de sociedade e humano, no qual a excelência só é possível no contexto social e comunitário. Polis, urbe e civitas demonstram etimologicamente a importância da construção social conjunta e o desenvolvimento da virtude social como consequência da vida em conjunto. Perdido este horizonte de virtude e natureza humana, que se concretiza na cidade, ao assumir-se que a principal característica do humano é a luta entre si ou competição para o acumular da propriedade individual, assumido como direito absoluto, a lei e a ordem da Cidade, surgem como imposições necessárias e apaziguadoras, sendo abandonada a ideia da sociabilidade como elemento constitutivo de humano. Assim, tal como Jean-Jacques Rousseau, em Emílio, propõe o regresso à educação natural longe da cidade e das suas alienações, Eça, apresenta a paisagem serrana e a simplicidade dos costumes na pequena aldeia ou quinta, como refúgio em que o humano reencontra a sua natureza numa relação romântica com o paraíso perdido.

Sem comentários:

Enviar um comentário