"Caminhante sobre mar de névoa", Caspar David Friedrich, 1818 |
O título “A cidade
e as serras” revela uma categorização moderna e iluminista ao
estabelecer a separação entre sujeito cognoscente e realidade a
descobrir, ou seja, na relação que se estabelece entre a paisagem e
o olhar que a define como paisagem não é a paisagem, enquanto
entidade, que se dá, mas, o sujeito que olha, que a cria e define. O
olhar humano atribui e caracteriza a paisagem como realidade para si,
ao fazê-lo transforma o mundo em várias categorias antropológicas
de segmentação e dissecação que criam a ilusão do controlo e
manipulação do real.
Por outro lado, o
título “A cidade e as serras”, apresenta uma distinção entre
paisagens mais humanizadas e menos humanizadas, em que a categoria
humano é recurso crítico para a avaliação de comportamentos e
acções sociais, tecnológicas, científicas e filosóficas. A
questão que se coloca diz respeito à definição de humano a partir
da qual, Eça de Queiroz, constrói e caracteriza tipos, personagens
e paisagem narrativa em que estes se movem.
Ao referir a Cidade
como lugar de excesso, de “fartura” e de alienação
assume a posição iluminista e romântica de retorno à “natureza”
como recurso salvífico para uma humanidade envolta nas ilusões do
progresso e da tecnologia. Sair da cidade e voltar à natureza, “às
serras”, significa deixar vícios e, fundamentalmente, assumir
que a dimensão social do ser humano tem limites ou fragilidades. A
felicidade parece encontrar-se em momentos de afastamento da Cidade,
o contrato social a que esta obriga, presente nos hábitos, nas
rotinas, nas leis e planeamento urbano, apresenta-se como algo que desvirtua a natureza
humana.
Esta abordagem
antropológica, característica do pensamento moderno, faz-se por
oposição ao modelo clássico de sociedade e humano, no qual a
excelência só é possível no contexto social e comunitário.
Polis, urbe e civitas demonstram etimologicamente a importância da
construção social conjunta e o desenvolvimento da virtude social
como consequência da vida em conjunto. Perdido este horizonte de
virtude e natureza humana, que se concretiza na cidade, ao assumir-se
que a principal característica do humano é a luta entre si ou
competição para o acumular da propriedade individual, assumido como
direito absoluto, a lei e a ordem da Cidade, surgem como imposições
necessárias e apaziguadoras, sendo abandonada a ideia da
sociabilidade como elemento constitutivo de humano. Assim, tal como
Jean-Jacques Rousseau, em Emílio, propõe o regresso à educação
natural longe da cidade e das suas alienações, Eça, apresenta a
paisagem serrana e a simplicidade dos costumes na pequena aldeia ou
quinta, como refúgio em que o humano reencontra a sua natureza numa relação romântica com o paraíso perdido.
Sem comentários:
Enviar um comentário